A dica mais importante para se preparar para uma grande viagem de bicicleta
Texto extraído da Revista Bicicleta, por Antônio Olindo
A bicicleta tem sido apontada como uma solução simples para grandes problemas. Talvez, por isso mesmo, o cicloturismo é uma ideia cada vez mais aceita e corrente entre as pessoas que desejam algo mais que uma viagem de entretenimento.
Tenho visto aumentar o número de pessoas que se lançam no desconhecido em grandes viagens de bicicleta. Frequentemente recebo e-mails com perguntas diversas e respondo cada uma, entretanto, fica o sentimento de que poderia falar mais, comentar sobre tantos pequenos detalhes que as pessoas não sabem que deveriam saber. É isso mesmo, com pouca experiência uma pessoa não sabe perguntar sobre o que poderia fazer alguma diferença no planejamento de uma grande viagem de bicicleta.
Em nossa página, livros e dvds procuramos repassar o que aprendemos sobre cicloturismo. No entanto, para simplificar as coisas, em cada guia os comentários se restringem ao circuito específico, nunca havíamos escrito sobre como se preparar para uma grande viagem de bicicleta. Aproveitamos a segunda edição do livro 7 Passos Andinos para fazer um capítulo especial comentando, de forma sistemática, os assuntos que consideramos importantes na preparação de uma grande viagem de bicicleta.
O texto é como uma conversa entre cicloturistas que se encontram pela estrada e contam as experiências, dificuldades, problemas e soluções que adotaram. Não queremos ditar regras, acreditamos que cada um deve desenvolver sua própria forma de viajar.
A lista de temas é enorme, desde as razões para a escolha de cada equipamento até macetes simples do dia a dia de acampamentos como “lavar a louça sem água”, passando por assuntos práticos de manutenção e mecânica emergencial até temas profundos, como o medo em suas várias manifestações.
Depois de meses escrevendo percebemos que, se estivéssemos realmente conversando com alguém, seria uma conversa de dias. Quando o texto desse “pequeno” capítulo especial de dicas ficou pronto, contava com mais páginas que toda a história do livro 7 Passos Andinos.
“Tá Olinto, então, fala logo qual é a tal da dica mais importante para se preparar para uma grande viagem de bicicleta”…
Em nossos guias de cicloturismo, procuramos informar tudo o que é necessário saber com a precisão de duas casas depois da vírgula. Para nós, isso pode ser importante para quem precisa calcular o grau de dificuldade e o tempo necessário para aquele circuito específico. Quem se lança em uma grande viagem de bicicleta não está tão preocupado com isso, pois busca exatamente o desconhecido.
Parece haver um senso comum em nosso país que correlaciona o sucesso de uma aventura a um minucioso planejamento. Talvez esta seja a herança de aventureiros que se lançaram ao mar ou se propuseram a escalar difíceis montanhas.
Uma viagem de bicicleta pode ser muito simples, isso possibilita ao cicloturista viver uma grande aventura na viagem ao invés de executar um complexo projeto de um circuito que sai de um ponto e chega a outro. Vejo no cicloturismo um caminho amplo que a rigor qualquer um pode trilhar. Ser o primeiro a chegar a um lugar físico que nunca ninguém conseguiu chegar é um conceito de aventura atrelado ao século XIX e tem pouco sentido nos dias de hoje. Pouco importa que todo o planeta já tenha sido explorado, continuo desejando conhecer lugares para minha própria satisfação, independente de ser o primeiro ou não.
Além da viagem para conhecer lugares e pessoas, o cicloturista pode conhecer e enfrentar a si mesmo chegando a um nível de autoconhecimento superior. Acredito que não há como fazer uma viagem para conhecer bem o mundo externo sem fazer a mesma viagem para conhecer bem seu mundo interno. Na atualidade, vejo que a última fronteira não está naquele local distante, mas sim, dentro do próprio homem.
A aventura não pode ser medida em quantidade de quilômetros, melhor observar a distância que cada um toma daquilo que lhe é conhecido e quanto cresce e aprende com as experiências do caminho. Por exemplo: se em sua viagem tudo aconteceu como planejado, talvez tenha percorrido somente os caminhos de seu universo conhecido.
Por outro lado, se utilizarmos “explorar o desconhecido” como conceito de aventura, como poderíamos planejar uma verdadeira aventura? Afinal, como podemos prever e nos preparar para o que realmente não conhecemos? É como desenhar um cubo em uma folha de papel, a perspectiva é somente a representação da terceira dimensão que não cabe nas duas dimensões do plano.
Por tudo isso, vejo que o conceito de aventura é relativo e está intrinsecamente ligado ao histórico de cada um. Existirá uma verdadeira aventura sempre que conseguirmos ultrapassar as fronteiras do que é conhecido e de tudo aquilo que esta consciência pode imaginar e planejar. Quando entramos num “terreno desconhecido” e a dúvida nos abraça, o sabor da aventura aumenta e a viagem passa a ser mais especial.
Sendo assim, acredito que, mais importante que tomar o trabalho de organizar uma planilha com datas, locais e horários de saída e chegada, é importante trabalhar a coragem. Não é uma questão de se tornar um destemido valentão. A coragem nos tempos atuais pode ser simplesmente ir contra um sistema que impõe o medo como padrão de relacionamento. A coragem pode estar em se desapegar enquanto toda a sociedade trabalha com a lógica do “possuir” e do “acumular”. Falo de uma coragem que vem da fé em seu sentido amplo que significa “acreditar”.
Mais do que conseguir uma resposta para cada evento imaginário que possa ocorrer em uma viagem, a melhor preparação é feita internamente. Às vezes é preciso aceitar e abraçar os problemas que certamente virão, mas ter sempre a certeza interior de que encontrará uma saída com suas capacidades e seus diminutos equipamentos de cicloturista.
“Essa história tá muito complicada Olinto, não tem uma dica mais simples? Algo como tomar muita água em dias quentes?”
Para simplificar vou utilizar uma frase de Maya Angelou: “A coragem é a mais importante de todas as virtudes, pois sem coragem, você não pode praticar qualquer outra virtude de forma consistente.”
Para compreender melhor a frase, simplesmente imagine alguém que, tendo nascido com uma voz maravilhosa, não tem coragem de se expor e cantar em um palco. De que adianta ter um planejamento perfeito, saber de tudo, estar treinado e forte se nunca tiver a coragem de partir e se lançar na aventura de uma grande viagem de bicicleta? É por isso que dizem que a pior viagem é aquela que nunca começou…
Parte de nosso trabalho é fazer com que as pessoas tomem riscos e se lancem em aventuras de bicicleta. Minha experiência tem demonstrado que a vida em si já é uma aventura, temos somente a ilusão de estarmos seguros por isso ou aquilo e, a rigor, quando nos lançamos no desconhecido de uma grande viagem de bicicleta, nem sempre estamos realmente aumentando nossos riscos mas, quase sempre, estamos nos desenvolvendo.