Como as bicicletas transformaram o nosso mundo
O primeiro Tour de France (Volta a França) foi realizado em julho de 1903. Dos 60 ciclistas que participaram, apenas 21 terminaram o extenuante percurso de 2428 quilómetros. O organizador da prova, Henri Desgrange, disse que o Tour de France ideal seria tão difícil que só um ciclista o conseguiria terminar.
A história talvez não se repita, mas certamente tem rimas. Com a procura por bicicletas a aumentar e com os países a preparem-se para gastar milhares de milhões a redesenhar as suas cidades – com um novo foco no ciclismo e nas caminhadas – vale a pena lembrar como é que o advento da bicicleta, em finais do século XIX, transformou a sociedade a nível global.
Era uma tecnologia extremamente disruptiva, facilmente o equivalente aos smartphones da atualidade. Durante alguns inebriantes anos na década de 1890, a bicicleta foi um bem obrigatório – um meio de transporte rápido, acessível e com estilo, que nos poderia levar a qualquer lugar, a qualquer hora do dia e de graça.
Quase todas as pessoas conseguiam aprender a andar de bicicleta, e quase todas andavam. O sultão de Zanzibar começou a andar de bicicleta. O mesmo aconteceu com o czar da Rússia. O amir de Cabul comprou bicicletas para todo o seu harém. Mas foram as classes média e operária pelo mundo inteiro que tiraram realmente partido da bicicleta. Pela primeira vez na história, as massas eram móveis, capazes de ir e vir quando quisessem. Não havia mais a necessidade de se usar cavalos e carruagens dispendiosas. O “cavalo das pessoas”, como era conhecida a bicicleta, não era apenas leve, acessível e fácil de manter, era também o veículo mais rápido nas estradas.

Esquerda: Na década de 1890, a bicicleta tornou-se no símbolo da Nova Mulher, que era independente, progressista e queria ter uma voz política. A Godey, uma revista mensal feminina da época, escreveu: “Na posse da sua bicicleta, a filha do século XIX sente a sua declaração de independência proclamada”.
Direita: Trabalhadoras constroem aros de bicicleta na fábrica Hercules Cycle, em Birmingham, Inglaterra, na década de 1940. Fundada em 1910, a Hercules era na década de 1930 um dos maiores fabricantes de bicicletas do mundo, produzindo mais de mil bicicletas por dia.
A sociedade sofreu uma transformação. As mulheres estavam particularmente entusiasmadas e descartaram as suas pesadas saias vitorianas, adotaram calças e roupas “racionais” e fizeram-se à estrada em grandes números. “Acredito que as bicicletas fizeram mais pela emancipação das mulheres do que qualquer outra coisa no mundo”, disse Susan B. Anthony em 1896 numa entrevista ao New York Sunday World. “Regozijo sempre que vejo uma mulher a passar de bicicleta… a imagem de uma mulher livre e sem limites.”
Em 1898, o ciclismo tinha-se tornado numa atividade tão popular nos Estados Unidos que o New York Journal of Commerce alegou que os restaurantes e os teatros estavam a ter prejuízos na ordem dos 100 milhões de dólares por ano. O fabrico de bicicletas tornou-se numa das maiores e mais inovadoras indústrias da América. Um terço de todos os pedidos de patentes eram relacionados com bicicletas – tantos que o gabinete de patentes dos EUA teve de construir um anexo em separado para lidar com os pedidos.
De curiosidade a moda
O inglês John Kemp Starley é a pessoa geralmente creditada por ter inventado a bicicleta moderna. O seu tio, James Starley, tinha desenvolvido as chamadas bicicletas penny-farthing (com uma roda pequena e uma grande) na década de 1870. Em 1885, acreditando que podia haver uma procura maior por bicicletas se estas não fossem tão assustadoras e perigosas, o inventor de 30 anos começou a fazer testes na sua oficina em Coventry – uma bicicleta com corrente e com duas rodas muito mais pequenas. Depois de testar vários protótipos, criou a bicicleta de segurança Rover, uma máquina de 20 quilos que se assemelha mais ou menos ao que hoje consideramos uma bicicleta.
Em 1886, quando foi exibida pela primeira vez num espetáculo de bicicletas, a invenção de Starley foi considerada uma curiosidade. Porém, dois anos mais tarde, quando foi emparelhada com o recém-inventado pneu – que não só amortecia o percurso como também tornava a nova bicicleta cerca de 30% mais rápida – o resultado foi mágico.
O primeiro astro do ciclismo, o americano Marshall Walter “Major” Taylor, tornou-se profissional em 1896, durante a adolescência, e estabeleceu sete recordes mundiais ao longo da sua carreira no ciclismo. O seu recorde para uma milha (1:41) duraria 28 anos.
Pelo mundo inteiro, os fabricantes de bicicletas tentaram apressadamente oferecer as suas próprias versões, e centenas de novas empresas surgiram para responder à procura. Em 1895, no Stanley Bicycle Show, em Londres, cerca de 200 fabricantes de bicicletas exibiram 3 mil modelos.
Um dos maiores fabricantes era a Columbia Bicycles, cuja fábrica em Hartford, no Connecticut, conseguia produzir uma bicicleta por minuto graças à sua linha de montagem automatizada – uma tecnologia pioneira que um dia se tornaria na imagem de marca registada da indústria automóvel. A Columbia, enquanto empregadora de tecnologia de ponta num setor em grande expansão, também ofereceu aos seus funcionários parques de estacionamento para bicicletas, cacifos particulares, subsídios de refeição para a cantina da empresa e uma biblioteca.
A demanda insaciável por bicicletas deu origem a outras indústrias – rolamentos, raios para aros, tubos de aço, ferramentas de precisão – que iriam moldar o mundo da manufaturação muitos anos depois de a bicicleta ter sido relegada para a ala dos brinquedos. O efeito colateral também se estendeu à publicidade. Foram contratados artistas para criarem imagens maravilhosas, e este mercado também se revelou lucrativo para os processos litográficos recém-desenvolvidos, que permitiam impressões com cores vibrantes. As grandes estratégias de marketing, como a transformação dos modelos velhos em obsoletos e o lançamento de novos modelos todos os anos, começaram com o comércio de bicicletas na década de 1890.

Genes e política
Com uma bicicleta parecia que tudo era possível, e as pessoas comuns partiam em viagens extraordinárias. Por exemplo, no verão de 1890, um jovem tenente do exército russo pedalou desde São Petersburgo até Londres, com uma média de 112 quilómetros por dia. Em setembro de 1894, Annie Londonderry, de 24 anos, partiu de Chicago com uma muda de roupa e um revólver com cabo de pérola para se tornar na primeira mulher a dar a volta ao mundo de bicicleta. Pouco menos de um ano depois, Annie regressou a Chicago e recebeu um prémio de 10 mil dólares.
No interior da Austrália, os tosquiadores de lã percorriam centenas de quilómetros de bicicleta à procura de trabalho. E partiam nestas viagens como se fossem fazer um passeio pelo parque, diz C.E.W. Bean no seu livro On The Wool Track. “Ele perguntava o caminho, acendia o cachimbo, colocava a perna sobre a bicicleta e arrancava. Se fosse uma pessoa criada na cidade, como muitos dos tosquiadores eram, muito provavelmente usava casaco preto e chapéu de coco, exatamente como se fosse tomar chá a casa das suas tias.”
E no oeste americano, durante o verão de 1897, o 25º Regimento do Exército dos EUA – uma unidade afro-americana conhecida por Buffalo Soldiers – fez uma extraordinária viagem de bicicleta de 3 mil quilómetros, desde Fort Missoula, no Montana, até St. Louis, no Missouri, para demonstrar a utilidade das bicicletas para o exército. Transportando equipamento militar completo através de terreno acidentado e trilhos enlameados, os Buffalo Soldiers fizeram em média quase 80 quilómetros por dia – duas vezes mais rápido do que uma unidade de cavalaria e com um terço dos custos.
O advento da bicicleta afetou praticamente todos os aspetos da vida – a arte, a música, a literatura, a moda e até a genética. Em Inglaterra, os registos das paróquias revelam um aumento nos casamentos entre pessoas de localidades diferentes na década de 1890. Os jovens, que tinham adquirido recentemente a sua liberdade, vagueavam livremente pelo campo, socializavam com outros jovens na estrada, encontravam-se em aldeias distantes e – como era referido pelos detentores da moral na época – ultrapassavam muitas vezes as pessoas mais velhas que os acompanhavam.
Em 1892, o compositor inglês Henry Dacre conseguiu um enorme sucesso em ambos os lados do Atlântico com a música Daisy Bell e o seu famoso refrão “uma bicicleta feita para dois”. O escritor H.G. Wells, ele próprio um ávido ciclista e observador astuto da sociedade, escreveu vários “romances com bicicletas” que tinham narrativas suaves centradas em torno do romantismo, da sensação de liberdade e das barreiras destruídas entre classes por este novo e espetacular meio de transporte.

Jovens ciclistas aproveitam para dar uma volta pelo Central Park de Nova Iorque em 1942. As bicicletas, depois de tomarem de assalto o mundo na década de 1890, foram rapidamente delegadas para a ala dos brinquedos quando os automóveis tomaram conta das estradas.
Mas Wells não foi o único visionário a perceber o papel que a bicicleta iria ter na redefinição do futuro. “O efeito [das bicicletas] no desenvolvimento das cidades vai ser revolucionário”, escreveu um escritor numa revista de sociologia americana em 1892. Num artigo chamado “As Influências Socioeconómicas da Bicicleta”, este escritor previu cidades mais limpas, mais verdes, mais tranquilas, mais saudáveis e com habitantes que queriam passar mais tempo ao ar livre. “Graças à bicicleta”, escreveu ele, “os jovens podem ver mais do mundo e abrir os seus horizontes com os contactos que fazem. Enquanto que a pé raramente se iriam afastar das suas casas, com as bicicletas estão constantemente a vaguear pelas localidades mais próximas, familiarizando-se com condados inteiros em tempo de férias, e por vezes até exploram vários estados. Estas experiências impulsionam a autoconfiança e a independência de caráter numa pessoa…”
A influência política de milhões de ciclistas e de uma das maiores indústrias dos EUA deu origem a rápidas melhorias nas ruas das cidades e do campo, e os ciclistas abriram literalmente o caminho para a inimaginável era automóvel. Brooklyn abriu uma das primeiras ciclovias da nação em 1895, um trajeto desde Prospect Park até Coney Island. Esta ciclovia foi usada por 10 mil ciclistas no seu dia de abertura. Dois anos mais tarde, a cidade de Nova Iorque estabeleceu o primeiro código da estrada para responder ao crescente número de “aceleras” – os ciclistas mais arrojados. O comissário de polícia da cidade, Teddy Roosevelt, colocou polícias com bicicletas nas ruas para deter os aceleras, afinal de contas, o “cavalo das pessoas” ainda era a coisa mais veloz nas estradas.
Mas esta situação não durou muito tempo. Em ambos os lados do Atlântico, alguns dos intervenientes no comércio de bicicletas já tinham virado as suas atenções para os pneus resistentes à tensão, para as correias de transmissão e para os rolamentos que, em conjunto, iriam dar origem a motores e a veículos ainda mais rápidos – não tão silenciosos como uma bicicleta e com uma manutenção mais dispendiosa, mas divertidos de conduzir e muito rentáveis de produzir. Em Dayton, no Ohio, dois mecânicos de bicicletas – os irmãos Wilbur e Orville Wright – estavam a explorar a ideia de uma máquina voadora, com asas presas a uma bicicleta para testar as possibilidades aerodinâmicas, enquanto financiavam as pesquisas com os lucros obtidos na sua loja de bicicletas.
De regresso a Coventry, no norte de Inglaterra, James Kemp Starley, cuja bicicleta Rover começou tudo na década de 1880, morreu subitamente em 1901 aos 46 anos. Mas nessa altura já a sua companhia estava a deixar de construir as humildes bicicletas para começar a produzir motociclos e, eventualmente, automóveis. Parecia que seria esse o futuro – nos EUA, outro antigo mecânico de bicicletas, chamado Henry Ford, estava a ter bastante sucesso com isso.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site nationalgeographic.com.
Por: ROFF SMITH
Fonte: https://www.natgeo.pt/historia/2020/06/como-as-bicicletas-transformaram-o-nosso-mundo